domingo, 17 de novembro de 2013

Mochilão Parte 4 - Puno , Ilha dos Uros - Copacabana ( Bolívia )

Essa parte final da história nos reservou algumas surpresas e dificuldades, porém não deixou de ser maravilhosa.

" Viajar é mudar o cenário da solidão."
Mario Quintana

Chegamos a Puno, na fronteira entre Peru e Bolívia, no final da tarde. Tínhamos a indicação do simpático senhor  do albergue de Cuzco para ficarmos em um hostel. Nos dividimos em dois táxis, cada carro com cinco pessoas, e fomos para o local.

Puno é uma cidade do sudeste do Peru, com uma população de aproximadamente 120 mil habitantes. É uma das cidades mais altas do mundo, com altitude de 3.800 metros. É famosa pelo Lago Titicaca, uma das fronteiras da cidade, e pela misteriosa Ilha dos Uros:  indígenas que sobrevivem no meio do lago.

Catedral de Puno, Praça de Armas da cidade

Chegamos ao hostel que tinha uma boa aparência, apesar de ficar em um bairro afastado. Era limpo e organizado. Nos acomodamos e estávamos mortos de fome. "Não tem nada aberto a essa hora em Puno". Essa foi a resposta à nossa fome dada pelo dono do lugar. A noite seria ainda mais longa do que imaginávamos, quando uma de nossas companheiras se deu por falta da pochete com o dinheiro e documentos de sua família, composta por três dos dez integrantes.

Vista da Cidade de Puno a partir do nosso hostel. No fundo o Lago Titicaca


Passar por uma situação de roubo ou perda longe do nosso país é complicado. Os chilenos falam a mesma língua que os peruanos, porém, o Peru não é o Chile. As coisas por lá andam um pouco mais devagar. Em Puno as autoridades não parecem estar acostumadas com situações desse tipo, mesmo a cidade sendo um polo turístico do país. Decidimos nos dividir e buscar o taxista que nos trouxe. Eu estava no outro taxi, então, não pude ajudar muito. Sem documentos, nossa ida para a Bolívia estava ameaçada.

A polícia não pôde fazer muita coisa, apenas registrar o boletim de ocorrência, e de forma calma lamentar o fato. Em uma cidade onde os táxis não são registrados por setor, foi impossível encontrar o taxista que, provavelmente, ficou com a pochete. O dinheiro deles se reduziu a zero. Foram cerca de R$1.500,00.

Depois dos problemas da noite, ainda sobrava a fome. O único lugar aberto àquela hora na cidade era uma lanchonete. Mesmo com preços baratos, a fome revelou nossa nova situação: economia. Queríamos continuar viajando, e todos juntos. Não podíamos gastar dinheiro com bobagens, já que três de nós precisariam de ajuda.

           ...

Contratamos um tour para a famosa Ilha dos Uros para o dia seguinte, em um preço de R$30,00 por pessoa. O tour foi comprado na rodoviária da cidade, assim que chegamos. Como tudo no Peru, ele foi reduzido a cada nova agência que nos aliciava. Ele incluía transporte de van e barco até a ilha e depois também incluía nossas passagens para Copacabana na Bolívia. Apesar do problema do "perda-roubo" dos documentos, ainda tentaríamos a viagem para o país de Evo Morales. Depois das atribulações, o jeito era dormir.

Antes de relatar a nossa experiência na Ilha dos Uros, vou falar um pouco sobre o lago Titicaca.

O Lago Titicaca está situado na fronteira entre Peru e Bolívia e está localizado na região do altiplano dos Andes. Tem cerca de 8.300 m²; situa-se a 3.821 metros acima do mar, é o lago comercialmente navegável mais alto do mundo; conhecido pelas suas ilhas, o seu nome vem do quíchua e aimara, línguas indígenas da região, significando "Pedra do Puma", pois segundos moradores, o lago tem o formato de um Puma gigante.

Mapa do Lago


Pegamos um ônibus, no qual nos juntamos com outros estrangeiros para então tomar um pequeno barco para chegar até as ilhas. A viagem pelo lago, que durou pouco mais de 40 minutos, reservou algumas vistas maravilhosas e uma expectativa grande. O clima estava gostoso, sem frio e sem calor, apesar do sol. Eu não sabia nada dos Uros, portanto estava ansioso para saber como eram e viviam. 

Pouco antes de tomar o barco para os Uros

O clima estava perfeito naquele dia
Minha surpresa foi grande ao encontrar no meio daquele imensidão de água, ilhas feitas de uma espécie de palha, além de barcos, casas e tudo o mais feitas do mesmo material. Desembarcamos nas ilhas dos famosos Uros.

Chegando âs Ilhas flutuantes dos Uros

Os barcos feitos de totoras levam os turistas

Nativa dos Uros, vestida com as fortes cores peruanas a espera dos estrangeiros

Uros são as ilhas artificiais e flutuantes do Lago Titicaca, no Peru e na Bolívia. Feitas pelos nativos, elas existem desde antes dos colonizadores europeus chegarem a essa região. Os Uros são feitos a base de totoras, uma planta aquática típica da América do Sul. Na verdade não só as ilhas flutuantes são feitas do material, mas as casas, os barcos e a totora também é fonte de alimento e artesanato para os nativos. 

Para manter a ilha flutuando é necessário constante manutenção. Os "Uros" vivem de pesca, caça, e artesanato. Com as atividades turísticas aumentando muito nos últimos anos, o turismo também é uma nova fonte de renda.





Nosso guia é habitante das ilhas, mas falava um inglês engraçado e um espanhol estranho, fora a língua nativa deles. O inglês dele era engraçado, pois ele sempre repetia: " Hi, my friends", a mesma frase repetida em espanhol " Hola, mi amigos". Sabíamos que ele ser trilíngue era uma grande conquista, mas não deixamos de reparar nesse detalhe. 



Nosso guia e seu "Hola, mis amigos"


Ele nos explicou, muito bem por sinal, como era a vida deles nos Uros. Nos contou a história daquele lugar ermo ( solitário ) e de seus habitantes e sua vida simples. As várias ilhas dependem hoje quase exclusivamente do turismo e das atividades de pesca e caça. O governo peruano não os auxilia, assim nos contou o guia. Ele demonstrou como caçam, e como as "ocas" são construídas com as totoras e nos ofereceu um pedaço da planta. O gosto é quase nulo. É como "comer" água. 

Os habitantes vendem aí mesmo seus artesanatos. Uma das ilhas funciona como centro comercial. Lá você encontrará lojas de artesanato, um pequeno bar e também, caso se interesse em passar alguns dias convivendo com os nativos, uma oca para dormir. É fantástica a organização deles. 

Nativas vendem seus artesanatos aos turistas




Apesar do constante fluxo de turistas, não são todos os nativos que estão acostumados com a agitação. Uma anciã nos afastou da proximidade de sua "casa", e não nos permitiu tirar fotos, a não ser que pagássemos. Nós éramos os intrusos, ela estava certa. 

A anciã não aceitava turistas na sua oca, nem fotos sem pagar


Para finalizar, o tour oferecia pelo valor de mais R$7,00 uma volta no barco feito de totora, mas como estávamos economizando resolvemos dispensar. Voltamos para Puno fascinados com aquele modo de vida e preocupados com nosso próximo destino: a Bolívia.

Dentro das Ocas

O barco leva os turistas pelas ilhas flutuantes

Crianças dentro de uma lojinha de artesanato


Sem notícias do que nos foi roubado, partimos para Bolívia, com promessa da polícia peruana que não teríamos problema na fronteira. A viagem de pouco mais de uma hora e meia foi quente. Chegamos na fronteira com o Peru e a Bolívia sob um sol ardente. Os trâmites deveriam ser feitos nos dois países. 

Foto de despedida na Ilha dos Uros


Apressados pelo motorista peruano, que não era nem um pouco simpático, tentamos fazer tudo o mais rápido possível. Trocar a moeda peruana pela boliviana e  a liberação para entrada na Bolívia. Nesse momento deve-se ter cautela. Essa região de fronteira é perigosa, e muitos se aproveitam dos estrangeiros para oferecer dinheiro falso. Faça tudo com cuidado. Tive que auxiliar muitos estrangeiros que não entendiam as ordens dos bolivianos apressando o fluxo de pessoas. Minhas aulas de inglês foram um bom investimento.

Resolvido os meus trâmites, eu esperava, já na Bolívia o restante do grupo. O ônibus já nos aguardava. Só faltava o nosso grupo. Pasmos ficamos quando descobrimos que os três que foram roubados não poderiam ingressar no país. O documento expedido pela polícia peruana não servia de nada, já que eles tinham uma filha menor, e não possuíam comprovação que eram os pais da mesma. Estávamos perdidos. Os bolivianos não entenderam nossa situação e estavam estressados. Estávamos "presos" ao Peru. 

Na fronteira entre Peru e Bolívia

 Ficamos naquela situação incômoda por alguns minutos. Foi um momento triste. Todos os estrangeiros nos olhavam pelas janelas do ônibus, imaginando o que se passava. A pobre da Jo, a filhinha da Javi e do Pablo, o casal roubado, chorava. Não os deixaríamos ali no meio do nada. O que fazer em uma situação assim?

O motorista do nosso ônibus veio falar com nós e fez uma proposta: a de entrarem ilegais. Aquilo parecia loucura, mas nós tínhamos sido injustiçados. Recusamos a proposta. O motorista, nervoso, se foi. Nosso ônibus saía lentamente e nós ficamos, observando ali parados, entre Bolívia e Peru, sem sabermos o que fazer. Até que chegou uma peruana e nos disse:

" Não sejam bobos, vão pra Copabacana. Quando voltarem, finjam que nunca saíram do Peru. Vocês só não vão ter o documento de saída e entrada no país, porém a fiscalização é péssima. Muita gente faz isso aqui. "

Pensamos na hipótese. Realmente a fronteira era má fiscalizada. As pessoas passavam andando sem nenhum problema, só os que iam direto pra polícia boliviana que tinham que mostrar documentos. 

" Vão logo, ônibus de vocês ainda está ali "- nos alertou a velha senhora.

Nos olhamos  e nossos olhar confirmou a decisão: Iríamos sim pra Bolívia. Corremos, escondidos e com medo, de volta para o nosso ônibus. O motorista abriu a porta e o bagageiro para colocarmos novamente nossas malas. Ninguém parecia nos observar. Combinamos que o trajeto de volta seria feito pelo mesmo condutor, e ele faria exatamente a mesma coisa: Deixaria nossos amigos sem documentos na fronteira, enquanto o restante de nós fazíamos os trâmites. Se alguém perguntasse a eles, nunca saíram do Peru, e a documentação iria apenas confirmar isso. Pagamos um valor de R$30,00 de "gorjeta" ao motorista e seguimos mais aliviados, porém ainda com medo, para Copabacana. 

Ufa. O coração bateu mais rápido, a adrenalina correu na veia e a aflição foi vencida. Era hora de descansarmos o corpo e a mente. Enfim, na Bolívia.

Bolívia é um país do centro da América do Sul. Um dos poucos sem acesso ao oceano, território perdido em uma guerra que envolveu Chile e Peru, a Guerra do Pacifico.  Tem uma população de pouco mais de 10 milhões de habitantes e a capital é Sucre ( governo ), ou La Paz ( administrativa ). Sua população é bem mesclada e possui uma cultura indígena muito forte. É também o país mais pobre da América do Sul, e muitos bolivianos vão para São Paulo aí tentar uma vida melhor.



Copacabana, também tem praia, assim como a correspondente carioca, porém é uma praia banhada pelo lago Titicaca. Uma cidade cheia de turistas, que assusta um pouco a noite. Saímos a procura de um bom lugar para nos hospedar. Mortos de fome e cansaço, a tarefa não foi fácil. Os preços eram mais baratos que no Peru, porém não ofereciam muita higiene  e a maioria não tinha banho quente. 

Depois de percorrermos várias hospedagens, decidimos ficar em uma no centro de Copacabana que oferecia o que precisavámos. No outro dia faríamos o famoso passeio até a Ilha do Sol ( não a mesma da canção do Netinho ), precisávamos comer e descansar.

Vista da rua do nosso hostel

Igreja no alto do Morro, em Copacabana

"praia"

Fizemos uma boa refeição em um restaurante barato e lotado na cidade. Pagamos uma bagatela de R$10,00 pela entrada + prato principal. 

Ficamos surpresos quando o garçom veio nos atender. Ele não tinha mais do que 10 anos. Parecia cansado, mas não podíamos fazer nada. Aquele não era o nosso país, muito menos nossa cultura. O trabalho de crianças na Bolívia infelizmente é uma realidade que assusta. Em agências de turismo, restaurantes ou nas ruas da cidade é muito fácil encontrar meninos que estão em idade escolar, trabalhando.

Depois de jantarmos percorremos um pouco a cidade. Ficamos um pouco receosos com a hospitalidade do lugar. Não posso julgar um país inteiro por um punhado de pessoas, mas em Copabacana, não parecíamos bem-vindos. Os chilenos foram insultados em alguns momento nas ruas: " Chilenos de mierda", e o olhar impaciente dos vendedores ao perceber a procedência dos meus amigos era visível.


Talvez essa situação se "justifique" com as recentes tentativas da Bolívia de reaver o pedaço de terra que se julga seu por direito. O sonhado acesso ao Oceano Pacifico que tanto faz falta para o país de Evo Morales, está sendo discutido na Corte Internacional de Justiça, em Haia. Não poderíamos deixar uma desavença política destruir nossa viagem, então, fizemos pouco caso dos ocorridos. 

Percorremos a noite boliviana e o seu ar indígena e artesanal, e por volta das 11 da noite nos retiramos. Precisávamos descansar para os últimos dias de nossas viagem. Aquele dia tinha sido muito esgotante.

" Pior que não terminar uma viagem é nunca partir."
Amyr Klink

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